sábado, 7 de março de 2009

FORAM AS DORES QUE O MATARAM

Não importa o dia. Nem mesmo importa o ano em que se conheceram. Aconteceu. E houve um momento em que se amaram. Talvez tenha havido muitos momentos em que se amaram.

Depois a rotina de vidas que se afastaram e, incompreensivelmente, continuam juntas. E dramaticamente caminham juntas, num desafio permanente à vida, à morte, ao direito de viver.

Não matei o meu marido.

Eu amava-o. Porque matá-lo?

Foram as dores do corpo que o condenaram. O sangue pisado, o ventre moído, as feridas em pus.

Foram as pancadas de ontem, as de hoje e, sobretudo, as pancadas de amanhã que o mataram.

Eu amava-o. Porque matá-lo?

Às vezes ficava à janela, meio escondida, vendo-o partir para o trabalho com a roupa que eu lavara e engomara. Gostava do seu modo de andar, do jeito como inclinava a cabeça. Via-o partir e ali ficava horas e dias à espera que voltasse e me trouxesse um riso e a esperança de que as coisas iriam mudar. Nesse dia não lembraria mais os tempos duros, os paus de pedra que me roíam e me desgastavam as entranhas. Mas para mim, não voltava nunca. Apenas para pedaços de meu corpo que esquecia logo.

Eu amava-o. Porque matá-lo?

Ele matou-se. Criou um espaço onde coabitavam a violência, a destruição, a miséria, o animalesco. E nós.

Deu-me as armas e fez-me assassina.

... Depois ficou tudo escuro

E o corpo a doer, a doer, a ...


Um soluço frágil absorve a última palavra.

(in Mornas eram as Noites de Dina Salústico, 1994)

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