quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Ruanda - A história que não se conta: crimes contra hutus, entre 1990 e 2002

O tribunal nacional descobriu uma realidade que não foi investigada pelo Tribunal Penal Internacional para Ruanda, que se limita a julgar os massacres contra a população Tutsi entre abril e julho de 1994 e deixa na impunidade os crimes cometidos contra os hutus ao longo da década, entre 1990 e 2002. O que se segue é um resumo da história contida no acto de processamento do magistrado Fernando Andreu a quarenta altos funcionários do actual governo ruandês, por crimes contra a humanidade e genocídio. Uma história que se explica pouco, porque revela a pilhagem econômica que incita o conflito étnico.

A guerra começa
Em 1 de Outubro de 1990, cerca de 3.000 soldados da FPR (Frente Patriótica do Ruanda: braço político, o Exército Patriótico de Ruanda: ala militar), equipados e treinados pelo Uganda de Museveni - amigo dos Estados Unidos e Reino Unido - invadem o nordeste do Ruanda e massacram a população, provocando ondas de refugiados entre os Hutus perseguidos. Os ocupantes são os filhos da aristocracia tutsi favorecida pelo governo colonial que tinha “deixado” o país, por não aceitar o resultado das eleições de 1961, que levaram à presidência o hutu Grégoire Kayibanda em uma Ruanda constituida em república democrática, que se declarou independente em 1 de Julho de 1962.

O isolamento armado de FPR persegue três objectivos: o extermínio dos hutus, a conquista do poder pela força – ainda mais sacrificando os tutsis que haviam permanecido no país, considerados traidores – e a articulação de uma estratégia com a participação de aliados ocidentais para aterrorizar a região dos Grandes Lagos e apropriar-se das riquezas do vizinho Zaire (hoje Congo).

Matanças selectivas
Intelectuais e líderes políticos hutus são eliminados, a fim de silenciar as vozes de consenso medir a resposta da população civil aos crimes. Entre outras, a 8 de maio de 1993 é assassinado Emanuel Gapsysi, líder do Movimento Republicano Democrático e líder do Fórum para a Paz e Democracia, e em 21 de Fevereiro de 1994 Felicien Gatabazi, presidente do Partido Social-Democrata. As operações são executadas pelo comando Rede, um grupo de elite treinado para matar a sangue frio. O partido do governo criou a sua milícia, o Interahamwe, que atacam a população tutsi. O FPR é inteligente o suficiente para atribuir os próprios ataques ao Interahamwe. Isso gera confusão sobre as origens da violência e uma situação caótica que faz com que o país seja ingovernável.

Frente Política e mediática
A estratégia da FPR centra-se em provocar a raiva dos hutus massacrando a líderes hutus e as populações deste grupo. O FPR faz tudo para construir uma imagem inclusiva através da infiltração das missões diplomáticas. Criar um canal de expressão para reviver os confrontos étnicos: Rádio Muhabura, activa desde 1991 e que em 1993 teria resposta na televisão Radio Libre das Mil Colinas, nas mãos de milícias hutu. Atacando os membros da Igreja, considerada culpada da perda de poder tutsi em 1961, por ter denunciado a fidelidade dos hutus ao estatuto privilegiado dos tutsis, uma desigualdade reforçada pelos interesses coloniais. Liquidar testemunhos que pudessem transmitir uma versão não manipulada dos eventos.

"Gukubura ": limpeza
No início de 1994 havia um milhão de refugiados no interior do país que fugiam das matanças de FPR. Muitos cadáveres foram queimados e os campos são atacados com armas pesadas. Em 14 de março de 1994 se ordenou a gukubura a limpeza total de qualquer elemento hutu nas regiões de Byumba, Umutura e Kibungo. As zonas vazias são ocupadas pelos tutsis provenientes de Uganda. Os presidentes mortos em 6 de Abril de 1994, o Falcon 50, em qual viajam os presidentes de Ruanda e Burundi, Juvenal Habyarimana e Cyprien Ntayamira, é atacado por dois mísseis enquanto se prepara para aterrar em Kigali. Todos os ocupantes morrem. De acordo com pesquisas recentes, a ordem veio de Paul Kagame, um militar treinado em Estados Unidos e máximo responsável da estrutura político-militar da FPR /APR e que tem como finalidade criar um estado declarado de guerra civil, para facilitar a operação de assalto ao poder. A ONU se recusou a investigar.

Violência calculada
O assassinato do presidente Hutu leva a uma espiral de violência calculada contra a população tutsi. O FPR ataca o exército ruandês sujeito ao embargo internacional de armas (FPR recebe armas de Uganda). É a batalha final para a conquista do poder que se resolve a favor dos tutsi de FPR, em 17 de julho de 1994. Desde abril a julho os massacres são relatados e leva a aproximadamente 500.000 vítimas, segundo o ACNUR. Esse episódio passa a história como o genocídio de Ruanda e a comunidade internacional tem escrito uma das suas mais lamentáveis páginas quando a ONU se retirou e deixa a população indefesa. Se bem que a maioria dos mortos eram tutsis, se tem dado pouco a conhecer, até recentemente, a violência contra hutus por parte de FPR: 150.000 assassinatos, desde o momento da invasão, e mais 312.726 entre julho de 1994 e Julho de 1995.

Denúncia Vallmajó
Em 23 de abril cerca de 2.500 camponeses hutus desarmados são metralhados no campo de futebol de Byumba. Paul Kagame dá a ordem. Os corpos são queimados no Parque Akagera ou enterrados em valas comuns. Em 24 de Abril são assassinadas mil pessoas na Escola Social de Bom Conselho e no Centro Escolar de Buhambe. Em abril de 26 de abril militares de APR/FPR levam um padre branco, filho de Joaquim Navata Vallmajó Sala, e os sacerdotes hutus José Hitimana, Faustin Mulindwa e Fidèle Milinda. Seus corpos não foram encontrados. Vallmajó era um testemunho perigoso que difundia as violações dos direitos humanos, também as dos extremistas tutsis de FPR, e denunciou a sua campanha de desinformação.

Testemunhos molestos
Os cooperantes de Médicos do Mundo, Maria Flors Sirera Fortuna (nascida em Tremp), Manuel Madrazo Osuna (Sevilla), Luis Vultueña Gallego (Madrid) também são provas do regime de terror imposto pelo FPR uma vez chegado novamente ao poder. Em dezembro de 1996, iniciam um projeto de saúde para 200.000 pessoas. Em 16 de Janeiro de 1997, um vizinho lhes mostra as valas comuns com centenas de cadáveres do massacre do campus Universitário de Nyakinana. A visita é detectada pelos serviços secretos e isto representa sua sentença, executada dois dias depois. Seguindo a mesma estratégia de silenciar as vozes críticas são assassinados os espanhóis Servando Mayor, Julio Rodríguez, Miguel Angel Isla e Fernando de la Fuente (31 de outubro de 1996, no campo de refugiados de Nyamitangwe) e o sacerdote guipuzcoano Isidro Uzcudun, que foi baleado na boca como uma mensagem (10 de Junho de 2000, em Mugina). São nove as vítimas espanhóis.

Perseguição aos refugiados
A tomada do poder pela FPR/APR faz que milhares e milhares de hutus busquem proteção em campos situados na zona oeste de Ruanda e que, a ser atacados, atravessam a fronteira com a Tanzânia, Burundi e Zaire. Em julho de 1994, há quase 3 milhões de refugiados ruandês, mais de um milhão no Zaire. Em Ruanda os massacres continuam em 95, 96 e 97 como a propagação de conflitos ao Zaire: Laurent Kabila se levanta contra Mobutu no fim de 1996 e com um exército de unidades ruandesas, ugandesas e burundesas toma o poder em julho de 1997. Um ano depois, quando não aceita a tutela externa em seu país - agora designada Congo – fazem a guerra desde Kivu, zona que controla Ruanda. (Kabila seria assassinado em 2001 por um comando da FPR) Os campos de refugiados são bombardeados pelo FPR e as câmeras recolhidos. Ruanda declara acabada a guerra e abre as fronteiras.

Triste papel de ACNUR
Embora o relatório Gersory já havia verificado em 1994 que o regime de Kigali não reunia as condições de segurança, o Alto Comissário das ONU para os Refugiados (ACNUR) inicia o programa de repatriação forçada dos hutus ruandeses a seu país, onde lhes aguarda a prisão e a morte. Metade deles, cerca de 500.000 recusam voltar e no final de 1996, começam dentro do território congolês, uma longa caminhada – mais de 2.000 quilômetros, árdua, a falta de alimentos e remédios - um êxodo incerto para tentar salvar a vida, perseguidos como um objectivo militar, mas inexistente aos olhos da comunidade internacional: ACNUR proclama que todos os ruandeses voltaram voluntariamente para casa. Em janeiro e fevereiro de 1997, Juan Carrero e outros membros na Fundação S'Olivar fazem greve de fome reclamando o fim da violência na região dos Grandes Lagos. Emma Bonino, Comissária Europeia para a Acção Humanitária, visita o campo de Tingi-Tingi, acompanhada de câmeras para mostrar ao mundo que os refugiados estão lá. Logo após vai ali mesmo Sadako Ogata, Alta Comissária da ONU para os refugiados e afirma que só pode assegurar a protecção daqueles que voltar ao Ruanda. O campo Tingi-Tingi é destruído em 1 de março pelo FPR; estavam concentradas ali cerca de 300.000 pessoas. Alguns dos quais haviam abandonado o local e conseguiram chegar à República do Congo [Brazzaville] ou a república Centro-Africana. No total cerca de 500.000 refugiados perdem a vida

A presa
A tutela que não aceita Kabila de seus amigos ruandeses é a da pilhagem das vastas riquezas naturais do seu país, na realidade, o principal argumento da primeira guerra do Congo (no final de 1996 e 1997, que leva Kabila ao poder), da segunda guerra do Congo (em 1998 a invasão do Uganda e Ruanda, com o apoio dos Estados Unidos), também conhecida como o genocídio de Congo, e da violência que até hoje continua. O resultado? Cerca de 6 milhões de mortos desde 1996. Embora apresentado ao mundo como uma guerra tribal o fogo está atiçado desde o Ocidente. Alguns anos atrás a congressista dos Estados Unidos Cynthia McKinna denunciou o envolvimento directo da American Mineral Fields (Campos Minerais Americanos) e até agora dezenas de empresas multinacionais de mineração americanas, canadenses e europeus financiam o conflito, saqueando e extraindo ouro, diamantes, coltan, cassiterita e madeira dentro regime neo-esclavagista.

Fonte:CasasdeÁfrica.
Traduzido por Abenaa.

1 comentário:

  1. Sempre é abordado e repudiado o massacre dos Tutsis pelos Hutus e ninguém indaga o motivo.

    Segundo relatos, crivéis, o conflito existente entre estes dois grupos da sociedade ruandesa remonta a epóca colonial, que os Tutsis colaboraram (importa saber como) com os colonos em detrimento dos interesses/necessidades de África e africanos. Por isso os Tutsis passaram a ser desprezados pelos Hutus, que os consideravam e tratavam como "baratas", esmagando-os sempre que os via. Muita família foi exterminada.

    Esta contenda permanece até os dias actuais.

    É necessário, com a mentalidade contemporânea de Direitos Humanos, repudiar o comportamento dos Hutus, mas com adequado/proporcional entendimento e compreensão devido as circunstâncias que ditaram a sua origem, ou seja, a colonização.

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